sexta-feira, 29 de março de 2019

O menor Joaquim - a fraude que escraviza

Ao português Joaquim Guilherme da Costa foi oferecido em venda o menor Joaquim. Desconfiando do negócio proposto, perguntou o Sr. Costa ao infeliz que se tentava comercializar como cativo de onde era natural. Este lhe respondeu que de Minas, no Estado Oriental. A pergunta não era gratuita: na Pelotas do ano de 1856 - onde se passara a cena - era de conhecimento geral as artimanhas de vendedores de escravos que negociavam negros orientais ilegalmente escravizados na província sulista. Diante da recusa da compra, o vendedor se apressou em apresentar uma "certidão de idade" que garantiria a lisura do negócio. Pior a emenda que o soneto. Com o documento em mãos, saltou aos olhos do possível comprador a idade referida do menor. Segundo ele "o crioulo representada quinze ou dezesseis anos e a certidão é de sete anos" (!). Por sentimento humanitário ou precaução de ter seu nome envolvido com a justiça e o investimento colocado em risco o Sr. Costa não comprou Joaquim.

Manoel Cardoso de Sousa, outro português a quem fora oferecido Joaquim, também não comprou. Dizia Manoel que a certidão parecia de uma outra pessoa. Apontava ainda que o menor Joaquim deveria ser livre por falar castelhano e "estava certo ser ele forro por ter nascido no Estado Oriental".

A João Antunes da Silva - esse natural da província - Joaquim também fora oferecido. Novamente o negócio não se realizou. Disse João que soube por "voz pública" da disposição da venda, mas que a mesma "voz pública" alertava que Joaquim era livre e estava sendo ilegalmente vendido como escravo.


No interior da casa do português Joaquim Monteiro se encontrava o menor Joaquim sendo oferecido em negócio quando se pôs a chorar dizendo que era livre. Vendo o desespero do garoto e sua fala castelhana o Sr. Monteiro recusou imediatamente a oferta. E assim se sucederam outras tentavas frustradas de vender o menor: ao português Pedro José de Campos, ao espanhol Manuel Ginés Martinez, ao tenente-coronel Serafin Ignácio dos Anjos... Inúmeras recusas pois o negócio parecia ilegal, fraudado, criminoso. Tais avaliações pareciam fáceis de se perceber, pois foram igualmente apontadas por diferentes indíviduos.

Miguel Antonio Rodrigues Paes, o pretenso senhor de Joaquim, argumentava que o menor havia nascido em Canguçu e muito pequeno havia sido levado para o Uruguai - no ano de 1845. Sintomaticamente teria vindo ao mundo em 13 de maio (de 1844): nunca fora livre, assim como nunca foram verdadeiramente livres os negros brasileiros de quarenta e quatro anos mais tarde, após a princesa assinar a abolição com seu legado de liberdade parcial, tutelada e uma pseudocidadania de segunda ordem.

AHRS / Jornal Diário do Rio Grande / 29 e 30 de setembro de 1856, p.2.
Um correspondente do Jornal Diário do Rio Grande (de Porto Alegre) em Canguçu enviou um texto bastante sugestivo em 15 de setembro de 1856. Publicado no final do mês, o artigo revela a prática criminosa rotineira de fraude em documentos comprobatórios de idade.

Texto digitado - Jornal Diário do Rio Grande, 29 e 30 de setembro de 1856, p.2.
O caso citado é muito similar ao de Joaquim, apesar de indicar que o nascimento do menor que se pretendia cativo havia sido no ano de 1842 (pelas indicações do processo, Joaquim haveria nascido em 1844). Ainda que não estivesse tratando diretamente de Joaquim, o correspondente revela que casos como esse aconteciam frequentemente e que eram de público conhecimento. Sendo assim também o eram das autoridades que deveriam atuar para combater tais práticas criminosas...

O inquérito policial é concluído com o delegado Alexandre Vieira da Cunha considerando o réu culpado. O promotor público solicitou que o réu fosse condenado baseado no artigo 179 (que tratava de crimes de escravização ilegal), com agravante de premeditação.

Em 08 de outubro de 1856 ocorreu o julgamento. O Tribunal absolveu o réu Miguel Paes. Tribunal formado por pessoas "da comunidade" para julgar casos importantes, de grande repercussão social. O júri "popular" não ouviu a "voz pública". Tampouco ouviu as diversas testemunhas de acusação - contra nenhuma de defesa. E nem mesmo escutou autoridades como o delegado de polícia e o promotor público. Talvez tenham ouvido suas consciências de mentalidade escravista, seus investimentos passados, presentes ou futuros e o ambiente complacente e conivente com o nefando comércio de seres humanos. Talvez tudo isso junto: sempre mais fácil que dizer não é se omitir, não se incomodar e deixar as coisas seguirem seu rumo, como estão...




Fonte: APERS, Processo-Crime, Comarca de Rio Grande, Cidade de Pelotas, Tribunal do Juri, Ano: 1856, maço 20, nº 789.




sexta-feira, 15 de março de 2019

Emilia - a escravização ilegal a olhos vistos

Na vila de Jaguarão circulava o ancião Ferrez. De 'espírito empreendedor', vivia de seus negócios. Muito conhecido na praça, tinha sua ocupação no lucrativo ramo de vender pessoas. Naquela época no Brasil, vender pessoas era uma atividade lícita - desde que as pessoas vendidas fossem 'legalmente' escravas. Mas Ferrez se dedicava a um afazer ainda mais lucrativo: comercializar pessoas livres como se cativas fossem. Escravização ilegal certamente era um crime. Mas apesar de ilegal, parece que nem tão imoral assim... Para a moralidade da época parecia que não havia grandes crises de consciência se uma pessoa negra fosse posta à venda - fosse ela escrava 'legal' ou não. Ainda mais se fosse desconhecida, estrangeira, vinda do outro lado da fronteira. E desta forma lucrava Ferrez - e tantos outros... - de seus crimes socialmente tolerados.

Após ser raptada de sua casa nas imediações da vila de Artigas (na República uruguaia), a oriental Emilia foi vendida por seiscentos patacões. O próprio Ferrez anunciava isso publicamente. Com "ciência e consciência de todos" Emília - negra, livre e uruguaia - fora trazida à força da Banda Oriental e comercializada em Jaguarão como escrava. Quem denunciava era o ministro uruguaio na Corte brasileira, Andrés Lamas, em nota diplomática ao ministro Visconde de Maranguape em 15 de julho de 1858. Dizia ainda que na noite de 20 de abril do mesmo ano, quando ocorreu o sequestro, Emilia - que teria entre 20 e 30 anos - havia sido levada das proximidades da vila de Artigas junto a seus dois filhos menores. Fora anunciada e vendida publicamente em Jaguarão, pois segundo Lamas, na localidade "esa infame pirateria está elevada á la clase de comercio licito".



Emilia poderia ter tido sorte e um destino diferente quando autoridades uruguaias se mobilizaram em seu auxílio. O próprio comandante da vila de Artigas foi pessoalmente à Jaguarão tratar do tema - obviamente que tal movimento não fora feito só por Emilia. Naquele momento o assunto já se tornara uma delicada questão internacional, envolvendo definições de soberania e independência -. Lá se encontrou com o chefe da fronteira brasileira, o coronel Vargas. Mas a aparente sorte de Emilia não foi páreo para a força da escravidão. Apesar de se conhecer o crime e o autor, as respostas genéricas e protocolares da autoridade brasileira deixava claro o pouco - ou nenhum...- interesse em se reparar o crime e punir os criminosos. E assim "sucedio lo que siempre suciede en estos negocios" - registrou Lamas em sua nota.

Emilia desapareceu de Jaguarão. Provavelmente a teriam enviado a Pelotas, seguindo o circuito criminoso de escravização de negros orientais: Jaguarão-Pelotas-Rio Grande e, por fim, a Corte, no Rio de Janeiro. Dizia Lamas que "este és el itinerario ahora más generalmente seguido para obtener mayor y más tranquilo provecho del crimen". E Ferrez...era como se nada houvesse ocorrido. Escreveu o ministro oriental que "El criminal Ferrez no fué ni levemente molestado; nádie le dijo una sola palabra y sigue viviendo en Yaguaron en pléna libertad y seguridad".

Até onde se sabe, Emilia desapareceu da documentação e da liberdade. Com seus dois filhos foi jogada na vala comum da escravidão desumana - como todas - e ilegal - como grande parte dos casos. A associação da ganância dos traficantes de carne humana com a tolerância (...conivência...cumplicidade...) das autoridades provinciais rio-grandenses sequestrou o futuro de Emilia e sua família. E mesmo que a representação oriental cobrasse com veemência o governo brasileiro apontando que "la situación creada por la frecuencia y la impunidad de tan nefário crimen és intolerable por parte de la República", o escravismo sistêmico e visceral continuou fazendo muitas outras vítimas - cuja grande maioria certamente não está registrada em qualquer documentação...



Fonte: ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN (Montevidéu) / FONDO MINISTERIO DE RELACIONES EXTERIORES / CAJA 89 - Legación del Uruguay en el Brasil / Carpeta 175 [1858].




Trabalhadores compulsórios: às armas ou às estâncias...

Ser pobre no Brasil oitocentista era ser submetido à lógica do mandonismo de classe e ser negro era ser um escravo em potencial. Frequentemente reunidas, tais características tornavam árdua a vida de qualquer indivíduo. De Piratini viria um dos tantos alertas abafados, esvaziados e naturalizados pela violência cotidiana e recorrente contra grupos que não se queria escutar. Curiosamente a queixa partiu do delegado de polícia da localidade.

Não se sabe se por questão humanitária ou na tentativa engenhosa de atingir algum desafeto - fator esse bastante comum à época a mobilizar ações aparentemente altruístas -, ocorre que Bernardo Pires em 15 de fevereiro de 1856 enviou diretamente ao presidente da província uma correspondência de denúncia acerca da situação cruel e desumana a que estava sendo submetida a população mais desassistida. Dizia o delegado suplente que "os pobres, os infelizes e indigentes que nem meios têm para se fardarem, são muitos deles os primeiros que envoltos nos trapos da cruel miséria marcham para os destacamento de fronteira".

Segundo sua própria narrativa, o que causava indignação ao delegado eram os sórdidos expedientes utilizados pelos mais abastados, pelos "moços remediados e em boas circunstâncias" para se evadirem ao serviço das armas. Fingiam trabalhar como marcadores de terneiros, se passavam como capatazes uns dos outros, forjavam papeletas de "arrematantes de passos em que nunca há uma canoa". Assim era comum que famílias inteiras não tivessem uma só pessoa alistada.

Como agravante ao infame e torpe artifício, aponta que muitos desses indivíduos compulsoriamente 'enganchados' nem mesmo chegaram a servir nas forças militares. Não atuavam "como soldados da Nação Brasileira, mas sim como peões, daqueles que domam e conduzem tropas de gado e de carretas". Sob o ponto de vista moral e de interesse público a acusação era grave: haveria um esquema montado para facilitar a esquiva dos filhos de famílias renomadas, de recursos ou mesmo com boas relações de cumprirem o serviço militar. Ao mesmo tempo tal aparato proporcionava mão de obra gratuita a estancieiros, comerciantes, militares (...) que participavam do negócio, acobertado pelo beneplácito do Estado e cumprimento às obrigações com a Nação.


Não se sabe os detalhes do desdobramento do caso. É certo porém, que a prática não se extinguiu. Até a denúncia do delegado "moços de boas famílias" sempre se evadiram ao reles serviço das armas - exceto às prestigiadas e rentáveis hierarquias de oficiais. A Guerra do Paraguai (1864-1870) viria a demonstrar isso claramente. E quanto a sugestão feita ao presidente da província para enfrentar o problema... Propôs Bernardo Pires que para "fazer respeitar os direitos do povo" era preciso formar uma patrulha "e percorrer os pontos mais essenciais do município [...] prendendo-se os maus, e recrutando-se os que podem e devem servir nos Corpos de 1ª linha do exército". Estaria a sociedade escravista brasileira preparada para tamanha quebra de hierarquias? Permitiriam as famílias abastadas que se cumprisse literalmente o que está escrito? Difícil responder...?


Fonte: AHRS, Fundo Polícia, Piratini, Correspondência Expedida, Ano: 1856, maço 16.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

O menor Policarpo

Em 07 de janeiro de 1866 Policarpo era um "negrinho de 12 anos" que estava a bordo do iate Bumba ancorado no porto de Pelotas. Assim escrevera o vice-cônsul uruguaio na cidade ao denunciar para o delegado de polícia que o menor era oriental e livre, que estava sendo vendido ilegalmente como escravo e que no próximo dia seria embarcado para Porto Alegre.


Policarpo também se declarava livre. Dizia ser natural do povoado de Minas, no Estado Oriental. Ao ser interrogado sobre o caso narrou sua trajetória. Disse saber que vivia em Minas na casa do brasileiro Eduardo Pereira e que seus pais eram Porfírio, soldado da República, e Luiza, nascida em Montevidéu. Afastado de sua família, fora levado por seu padrinho Sebastião Cardoso Leal para o Brasil. Transitaram por diversas cidades: Chuí, Santa Vitória, Jaguarão, Pelotas e Porto Alegre. Conta que Sebastião o tratava mal, como um escravo. Em Pelotas chegou a lhe vender como cativo para o argentino Custódio Echague por 1 conto de réis. Policarpo ignorava a transação, pois fora informado por Sebastião que estava sendo alugado para fazer cigarros. Só tomou conhecimento do fato quando Custódio lhe dissera que o levaria para a Argentina, onde seria livre, ficando como seu "pupilo" - pupilagem que largamente significava escravidão travestida de ação protetora. Replicou Policarpo que era oriental e já era livre. Sebastião teve que devolver o dinheiro recebido e desfazer o negócio que inclusive já estava registrado em cartório - provavelmente com receio de ser denunciado pela prática do crime de reduzir pessoa livre ao cativeiro.

Mas Sebastião não desistiu de tentar ganhar algum dinheiro vendendo como escravo seu afilhado. Rumou para Porto Alegre em um iate e acertou o negócio com o próprio dono da embarcação. Porém dessa vez fixou o preço em 850$000, provavelmente reduzindo o valor para agilizar a transação que já estava se tornando demasiado arriscada. Quando em Pelotas, Sebastião costumava ficar na casa de Antônio José Gonçalves Chaves, influente político, rico charqueador e senhor de escravos que atestara sua honestidade e sempre correta conduta. Em uma sociedade comandada pela força dos proprietários, quem ousaria contrariar tal testemunho?

Curiosamente o juiz municipal primeiro suplente de Pelotas Vicente José da Maia andou em direção contrária ao que poderia ser esperado. Pronunciou o réu indicando que Sebastião era culpado pelo crime de escravização ilegal. O promotor acusou o réu de reduzir o negro livre oriental Policarpo à escravidão e o vender em Porto Alegre em 13 de junho de 1865 a Domingos Duarte. Disse ainda que como agravante Sebastião teria agido com premeditação e abuso de confiança, pois o réu tinha "parentesco espiritual" com Policarpo (era seu padrinho).

Porém, mais curiosa ainda parece ter sido a decisão do tribunal do júri. Quase por unanimidade apontou que Sebastião, de fato, havia reduzido o menor Policarpo à escravidão. Mas, em seu veredito acrescentou que "o réu cometeu o crime casualmente no exercício ou prática de um ato lícito, feito com atenção ordinária". Assim, Sebastião foi considerado inocente.

Novamente uma crítica de um juiz - e, dessa vez, com muito mais contundência - à complacência com as atitudes criminosas de Sebastião. Antônio Ferreira Garcez, juiz da comarca, decide não aceitar o veredito do júri e resolve apelar da decisão. Perguntou como seria possível "em ato lícito vender o padrinho à seu afilhado, será um ato lícito romper os sagrados laços do parentesco espiritual pela cobiça de um punhado de ouro"? E mais: "Será cometer casualmente o crime tentar o apelado [Sebastião] vender o crioulo livre Policarpo à Custódio Echague, que não conviu na venda, por constar-lhe ser livre o crioulo e ir depois vendê-lo mais tarde em Porto Alegre a Domingos Francisco Duarte"? Denunciou o juiz Garcez que o júri não poderia tomar uma decisão diametralmente oposta às provas dos autos.

Segue o processo ao Tribunal de Relação no Rio Janeiro. E segue a defesa intransigente ao crime contra a liberdade individual. Aliás, na capital imperial, a decisão ainda foi mais favorável ao réu. Para o júri, Sebastião não reduziu Policarpo à escravidão. Com argumentos vazios, procedimentos suspeitos e falta de várias testemunhas de acusação, Sebastião garantiu sua liberdade. E Policarpo... imagina-se que tenha sido libertado. Mas certamente que as lições de impunidade contidas em sua trajetória pessoal incentivariam ainda mais os que se dedicavam ao nefando negócio de tráfico ilegal de pessoas, assim como também reforçava ainda mais a precariedade de sua liberdade. Para Policarpo e a população negra em geral, a (re)escravização era sempre um fantasma muito presente.

Fonte: APERS, Processo-Crime, Comarca de Rio Grande, Cidade de Pelotas, Tribunal do Juri, Ano: 1866, maço 18, nº 715.


  

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Leopoldina no jornal

Em 30 de dezembro de 1858 o jornal O Echo do Sul de Rio Grande estampou em suas páginas uma denúncia sobre a venda de uma mulata (ou china...) "quase branca" que teria nascido livre no vizinho Estado Oriental. Antonio Vieira, dono de uma tamancaria em Pelotas, também se intitulava dono da escrava Leopoldina de aproximadamente 14 anos, a qual tentava apressadamente vender.

 

A partir da publicidade que ganhou o tema, a polícia local se viu compelida a investigar o caso. Leopoldina foi localizada e tomado seu depoimento. Confirmou que havia nascido no Estado Oriental e que fez uma lista de várias pessoas que sabiam do fato e poderiam depor a seu favor. Assinalou ainda que sua senhora sempre lhe dizia que havia nascido no país vizinho, apesar de batizada em Pelotas.

O promotor público de Pelotas estranhou o fato de não constar na certidão de batismo o local de nascimento de Leopoldina. Acrescentou também que nenhuma das testemunhas dizia saber nada sobre essa informação fundamental.

 A investigação descobriu que a venda de Leopoldina estivera tratada com o português Antonio Maria Wriche e que a suposta cativa chegou a morar algum tempo em sua casa. Em depoimento Wriche confirmou que Leopoldina lhe havia sido oferecida por Antonio Vieira por 1$200:000 réis. O negócio não se realizou porque Leopoldina confidenciou a ele que era livre e havia nascido no Estado Oriental. Wriche também relatou que Leopoldina lhe dissera que algumas pessoas a haviam aconselhado a procurar o vice-cônsul uruguaio, mas que não havia se atrevido a isso. Porém quando o seu pretenso senhor soube disso tratou de trazê-la para Pelotas e procurou vendê-la depressa, a ameaçando de surrá-la e vendê-la para a Bahia ou Pernambuco - onde não saberia nunca mais notícia alguma do Rio Grande do Sul - caso dissesse algo.




Obviamente que o réu tinha uma versão bem diferente do caso e dissera que queria de desfazer de Leopoldina "por precisão".

Na conclusão do inquérito policial, assinado pelo delegado de polícia de Pelotas Alexandre Vieira da Cunha, se afirmou que haviam diversos pontos mal explicados no caso. Porém, como não se provara que Leopoldina era livre,  permaneceria como escrava de Antonio Vieira. Exemplo claro de que no Brasil escravista o direito à propriedade avançou largamente sobre o direito à liberdade. A manobra de inversão do ônus da prova era somente mais uma estratégia para dissimular a galopante ilegalidade com que se nutria o escravismo, visceralmente indissociável à própria dinâmica do sistema.


Fonte: APERS, Processo-Crime, Comarca de Rio Grande, Cidade de Pelotas, Tribunal do Juri, Estante: 006.0312, Ano: 1859, maço 12, nº 543.





Contratos de peonagem

Em 1852 os governos do Uruguai e Brasil assinaram acordo regulamentando a utilização de trabalhadores contratados em território oriental vindos do Império. Tais trabalhadores eram negros escravizados, que deveriam ser libertados com a condição de pagarem seu valor em serviços. Segundo José Maria da Silva Paranhos, ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, o acordo celebrado de forma muito espontânea e conveniente para ambos os países deveria ser comemorado porque era uma forma de evitar o trabalho escravo clandestino das estâncias de brasileiros no Uruguai e também de "dar liberdade" aos cativos de que outra forma continuariam como escravos no Império. Além disso os peões contratados supririam uma necessidade de braços para trabalhar em solo oriental, após a devastadora Guerra Grande que havia durado mais de 10 anos.

Andrés Lamas, ministro uruguaio na Corte, discordava dos mútuos benefícios dos contratos tão propalados por Paranhos. Em maio de 1857 enviou uma reclamação diplomática ao governo brasileiro tratando do tema dos "esclavos que se introducen, se conservan y se crian en territorio Oriental á la sombra de supuestos contratos de locación de servicios". Lamas chamou a atenção para o notável número de trabalhadores contratados que se introduziam em território oriental. Afirmou que essas "desgraciadas personas de color" estavam sendo vítimas de "de la mas negra de todas las codicias". O valor de seu trabalho era tão ínfimo em comparação com o fixado preço de sua liberdade que haviam casos que deveriam trabalhar até 30 anos (!) para cumprir o contrato.




Mas a denúncia ia além... Acusava o ministro uruguaio que mais do que cínicos os contratos eram completamente ilusórios. Frequentemente os 'contratados' eram levados de volta ao Brasil e continuavam sendo tratados como escravos - o que configurava um crime de escravização ilegal. Isso revela que os peões contratos não passavam de uma manobra utilizada para inserir mão de obra escrava no Uruguai. Nesses infamemente fraudulentos contratos de prestação de serviços não só os trabalhadores seguiriam sendo tratados como cativos em território da República como seus filhos trazidos ao Rio Grande do Sul e batizados como nascidos de ventre escravo. Era a fé de batismo, com beneplácito de membros da Igreja, encobrindo e legalizando as escravizações criminosas. Em declaração contundente, Lamas apontou que no Uruguai "al lado del criadero de vacas se establece un pequeño criadero de esclavos". Fatos esses nem tão camuflados ou escondidos como se poderia imaginar, mas de público conhecimento e até impressos em jornais sul-rio-grendenses.
  
Assim se estabelecia uma delicada questão internacional envolvendo os dois países. Como poderia o Uruguai admitir a existência de trabalho escravo ou o nascimento de qualquer indivíduo como cativo em seu território? Isso contrariava as leis da República que haviam abolido a escravidão durante o fratricida e sangrento conflito da Guerra Grande, nos anos de 1842 e 1846. Tais práticas se constituiriam em atentados internacionais e seu imediato e efetivo combate por parte das autoridades do Império era exigido pelo ministro oriental como forma de respeito à soberania e independência da República uruguaia.

Nesse momento o expansionismo e as imposições - legais e ilegais - do sistema escravista brasileiro se tornam uma delicada questão diplomática a ser equacionada no já tenso tabuleiro internacional.

Fonte: ARCHIVO GENERAL DE LA NACIÓN (Montevidéu) / FONDO MINISTERIO DE RELACIONES EXTERIORES / CAJA 102 - Legación del Uruguay en el Brasil / Carpeta 124 [1857].